Aspectos iniciais para a reflexão sobre o jornalismo audiovisual: o conceito de imagem segundo Francis WOLFF



 O texto a seguir é um resumo da importante reflexão de Francis WOLFF sobre o poder das imagens. É um artigo muito bom que faz parte do livro Muito além do espetáculo (2005), organizado por Adauto NOVAES e publicado pela Editora SENAC - livro que, pessoalmente, acho que todo estudante e pesquisador das imagens deveria ter.

Este resumo aqui publicado é a base da nossa segunda aula de Teorias e Práticas Jornalísticas para Meios Eletrônicos - Telejornalismo. ATENÇÃO: este texto, por ser um resumo, NÃO PODE ser usado como fonte de pesquisa nem como fonte bibliográfica; para tanto CONSULTE DIRETAMENTE A OBRA DO AUTOR.

Boa leitura.

WOFF (2005) se pergunta quanto à especificidade das imagens atuais, quanto ao seu poder particular em nossas sociedades mercantis; ele sonda as ilusões próprias de nossa época que engendram esse volume e esse fluxo de imagens. O que interessa para o autor é o poder das imagens em geral sobre os homens, qualquer que seja o momento da história ou da civilização. Para ele, só assim podemos ver as singularidades das ilusões engendradas pela imagem de hoje em dia. Nesse sentido, é importante assinalar que o autor não crê que as imagens tenham mais poder hoje. O lugar que as imagens conquistaram na nossa vida cotidiana fez com que sua força diminuísse, uma vez que elas engendraram uma ilusão singular que ele chama de “ilusão imaginária”: uma ilusão muito antiga, de origem religiosa, que é, paradoxalmente, a crença de que as imagens não são imagens e a crença de que elas são produzidas por aquilo que elas reproduzem.

O primeiro aspecto do poder da imagem é seu caráter universal. O homem se caracteriza pela linguagem, mas também pela capacidade de produzir imagens. O segundo aspecto do poder das imagens é que elas exercem no homem uma série de afetos positivos e negativos.

De acordo com WOLFF (2005), a imagem começa a partir do momento em que não vemos mais aquilo que imediatamente é dado no suporte material, mas sim outra coisa que não é dada por esse suporte. A imagem começa quando paramos de ver o que é materialmente dado para ver outra coisa, para reconhecer uma figura conhecida; a imagem é representação. A ideia de representação diz que uma imagem representa porque ela torna presente qualquer coisa ausente: o que está presente torna presente alguma coisa ausente. A imagem é, então, o representante ou substituto de qualquer coisa que ela não é e que não está presente: ela representa o que ela não é ela não é; o que ela representa não representamos aquilo que está presente. Representamos o que está ausente, o que ainda não está, o que não está mais e o que não pode estar presente. “Representado” quer dizer que algo está presente na imagem e não na realidade; quer dizer tornado presente pela imagem.

A imagem é a relação necessária que a coisa presente tem de remeter necessariamente à coisa ausente. Uma imagem não é uma coisa: é uma relação com uma outra coisa. Toda imagem é uma imagem de alguma coisa: um desenho ou uma pintura que não represente ninguém pode formar um conjunto de figuras muito decorativas e belas, mas não é uma imagem. Falar de imaginação não é sinônimo de falar de imagem.

A imagem é a representação de uma coisa ausente que produz certos aspectos da aparência visível. Geralmente, para melhor representar é preciso não se assemelhar tanto. Para Platão, a imagem é múltipla e o que ela representa é único, mas ela também possui uma inferioridade em relação ao representado, uma vez que não é o verdadeiro ser, mas apenas imitação. A imagem é real nela própria, mas não tem a realidade daquilo que representa; é um falso ser, imitação da aparência e representação reprodutível de uma coisa ausente única à qual foram “emprestados” alguns traços aparentes e visíveis.

A imagem torna presente aquilo que não está presente de duas maneiras possíveis. Primeiro, o homem dispõe do poder interno de tornar presente por si mesmo, em pensamento, a aparência visível das coisas que não estão presentes: esse poder interno chama-se imaginação. Esse poder tem um equivalente externo que é o poder de tornar presente para a aparência visível o que não está presente na realidade exterior: essa é a faculdade humana de fazer e de compreender as imagens. O homem dispõe de imagens que se fazem imaginação ou que ele produz tecnicamente.

Pode-se invocar simbolicamente um ser ausente de três maneiras: pelo indício, pelo símbolo e pela imagem. Ao contemplar uma mecha dos cabelos de alguém que já morreu, estou diante de um indício; ao olhar o retrato de uma pessoa que já morreu, estou diante de uma imagem; e ao pronunciar o nome de uma pessoa que já morreu, estou diante de um símbolo. Os indícios são sinais que remetem à coisa ausente porque são partes dela, são elementos materiais isolados que pertencem a ela: não vejo o fogo, mas vejo a fumaça, que é dele um indício. Símbolos são representantes da coisa ausente, são puramente convencionais e não têm nenhuma relação de similitude com ela: não há nenhuma relação entre a palavra “gato” e um gato. Já a imagem, como representante da coisa ausente, está em relação de similitude e semelhança com ela.

O homem desenvolveu dois sistemas potentes para representar as coisas: o sistema sonoro da linguagem, pelo qual se comunica e torna comuns seus pensamentos e suas experiências do mundo; e o sistema visual das imagens, pelo qual torna presente para si mesmo, individual ou coletivamente, as coisas que são ausentes para todos. A imagem, porém, parece remeter necessariamente e naturalmente àquilo que ela representa: o poder representativo da imagem é analógico e o da palavra é global. As partes da palavra “gato” não remetem às partes do gato, mas as partes de um desenho de gato referem-se às partes do gato. A palavra não representa nada por si mesma, ela representa por convenção e por diferença em relação a todas as outras palavras. A imagem, pelo contrário, remete diretamente à coisa representada: o vínculo é direto do representante ao representado.

O que faz a potência da imagem, o que explica os poderes de captação que ela tem sobre o homem, não são suas próprias virtudes, mas, ao contrário, seus defeitos. Podemos explicar o formidável efeito das imagens sobre os homens a partir daquilo que elas não podem fazer nem dizer, mas que a linguagem pode fazer ou dizer. Com relação à linguagem, a imagem tem quatro defeitos. Ou seja, existem quatro modalidades essenciais do ser que a linguagem pode dizer e que a imagem jamais pode dizer: o conceito; a negação; o possível; e o passado e o futuro. Essas quatro impotências fazem toda a potência da imagem.

Primeiro, a imagem ignora o conceito: ela é irracional. Podemos representar um animal, mas não a animalidade; podemos representar um ser vivo, mas não a vivência; não podemos representar a generosidade nem o tempo, podemos apenas tentar ilustrar, por imagens, exemplos de um ato generoso ou do passar do tempo. Não dispondo de conceito, a imagem não pode raciocinar nem comparar nem induzir nem deduzir: ela não pode explicar nada; ao contrário, ela sempre deve ser explicada por outra coisa que não seja imagem (o discurso). Sua impotência para o conceito tem uma contrapartida: a linguagem tem dificuldade para descrever o indivíduo naquilo que ele tem de único e precisa, para isso, de longas descrições - a imagem pode mostrar isso com um simples olhar. A superioridade da imagem está na sua irracionalidade porque, por exemplo, uma foto de uma única criança africana morrendo de fone não informa nem explica, mas pode provocar piedade, indignação e revolta.

O segundo defeito da imagem é que ela mostra, mas ela conhece apenas uma maneira de fazer isso: pela afirmação. A imagem ignora a negação: nenhuma imagem de cachimbo pode dizer “isto não é um cachimbo”. O mundo da imagem não pode dizer “não é”. Ignorando a negação, a imagem ignora o debate, a dialética e a discussão: tudo é verdadeiro ou tudo é falso. Como a imagem só conhece o mundo da apresentação, tudo é posto no mesmo plano do real: se eu quiser dizer que “não é assim”, a única coisa que posso fazer é contrapor uma outra imagem que diga, ela também, “isto é assim”. A força da imagem por afirmação explica porque todos os sistemas políticos totalitários e todos os pensamentos monolíticos repousam e se apoiam em imagens.

O terceiro defeito a imagem está no fato de que ela também só conhece um único modo gramatical: o indicativo. A imagem ignora as nuances do subjuntivo ou do condicional, representando o real sem nuances e sem julgamentos. A imagem dá esse sentimento de realidade que a linguagem não dá: a imagem não pode dizer “mais ou menos” o real. Daí sua força de convicção aparente: os mais belos discursos podem ser contraditórios e as mais finas argumentações podem ser refutadas, mas uma imagem está sempre no indicativo.

A imagem também só conhece um tempo: o tempo presente. É esse o seu quarto defeito. Ela ignora o passado e o futuro, não pode representar o tempo porque tudo se dá no presente, tudo é co-presente na imagem. A imagem não pode dizer “não foi” nem pode dizer “será” porque a imagem sempre diz “é”. A fraqueza da imagem sem sua incapacidade de distinguir o tempo é o que faz a sua força mágica. A imagem faz reviver hoje mortos e mostra o tempo passado não como passado, mas como sempre presente; o agora eterno é o próprio tempo da imagem.

A imagem é um modo de apresentação do ausente e é de seus defeitos em relação à linguagem que a imagem tira o seu poder.

Há, também, três graus do poder da imagem referentes a seus três graus de ausência. O primeiro é sobre o que está acidentalmente ausente; aquele que, no presente, está longe, mas que poderia estar presente. Por exemplo: estou no Brasil, longe de uma pessoa, vejo uma imagem dela para matar a saudade e sorrio para a imagem como se a pessoa estivesse presente. Em segundo lugar, existe aquilo que está substancialmente ausente, irreversivelmente ausente e que nunca mais poderá estar novamente presente: é o caso do passado e dos mortos. Olhamos uma fotografia do Rio de Janeiro há 20 anos e vemos, presente na imagem, aquilo que nunca mais estará presente na realidade. Em lugar de aplacar minha nostalgia a imagem me dá nostalgia: a imagem me faz tomar consciência daquilo que nunca mais estará presente e cria em mim a falta desse passado. Em terceiro lugar, existe aquilo que está absolutamente ausente; aquilo que nunca pode, que jamais poderia e que jamais poderá estar presente porque é ausente deste mundo: são as imagens dos santos, por exemplo. Graças às imagens, o transcendente se torna imanente e penetra no mundo graças às imagens. O olhar que as contempla se eleva deste mundo para um outro mundo.

Nas ausências relativas à imagem, o primeiro grau pode tornar presente a qualquer momento um ausente ocasional que poderia estar presente. Em um segundo grau, a imagem pode representar o ausente definitivo, aquele que não pode estar presente, mas que, um dia, esteve. Em um terceiro grau, a imagem tem o poder ou a pretensão de representar aquele que não pode absolutamente estar presente. No mais baixo grau, a imagem é um representante visível de uma outra coisa visível que apenas ocasionalmente é visível. No mais alto grau (o grau da representação divina), a imagem visível tem o poder de representar o invisível: esta é a maior ambição da imagem, sua maior ilusão. Entre esses dois graus, as imagens visíveis têm o poder de representar as coisas passadas ou os seres mortos que não são nem inteiramente visíveis nem inteiramente invisíveis: é neste nível que há concorrência entre dois tipos de imagens.

As imagens dão vida aos mortos e aí está o seu poder. A vida dos mortos é a das imagens: aí está a ilusão. A necessidade de imagens nasce da preocupação do homem de fazer com que novamente seja em aparência aquilo que não pode mais ser: o passado ou a morte. É como se o passado ou o morto tivessem, eles mesmos, o poder de existir em imagens. Eis então como o poder da imagem é criador de ilusões: ela tem o poder de representar o ausente e pode também criar a ilusão de que é o próprio ausente que se apresenta. Os homens confundem imagem com realidade e tratam a primeira como a segunda.

No entanto, ninguém confunde um retrato com um fantasma: o retrato vem do trabalho real de representação de um homem; o fantasma ou a imagem ilusória supõe-se que venham da própria coisa representada - o fantasma é uma emanação. Mas é no terceiro grau, aquele da imagem sagrada, que a verdadeira ilusão da imagem aparece mais claramente.  A imagem feita da coisa e a imagem feita pela coisa se confundem: é como se os dois tipos de imagens (o retrato e os fantasma) se confundissem.

A imagem sagrada, que supostamente é a manifestação visível do invisível, é frequentemente invisível, escondida, ocultada aos olhares. O nascimento do monoteísmo é marcado pela luta contra o culto das imagens: o Deus bíblico é pura palavra, é transcendente sem figuras. Tudo muda com o cristianismo, porque Cristo é Deus, mas é também um homem invisível. Se a questão das imagens é central na história do cristianismo é porque o mistério da encarnação (que é o fundamento do cristianismo) reproduz o mistério e o mecanismo da imagem: Cristo é verbo e carne; é o filho visível do pai invisível; evoca duas naturezas em uma só pessoa.

Quanto mais a imagem se esforça para tornar presente o ausente, mais ela tenta representar o irrepresentável; mais ela tenta tornar visível o invisível; mais ela gera a ilusão de não ser imagem. É preciso diferenciar o poder real das imagens e a ilusão imaginária que esse poder engendra: a imagem tem o poder real de representar e a ilusão não consiste em lhe atribuir esse poder, já que é ele que procuramos ao criar imagens. A imagem tem, efetivamente, esse poder: essa é sua própria definição. Para a nossa faculdade imaginativa,  a imagem tem o poder de representar as realidades que não podem estar presentes. A ilusão não consiste em crer que as imagens se confundem com a realidade ou tem o poder de representar a realidade: não há ilusão criada pelas imagens. A ilusão não consiste em atribuir às imagens aquilo que se atribui à realidade. É o contrário: a imagem insiste em atribuir à própria realidade o poder que é das imagens, o poder de representar. A ilusão imaginária consiste em crer que a realidade tem o poder de sua própria representação; consiste em atribuir à realidade ausente representada pela imagem o poder de apresentar ela mesma em imagens.

Essa ilusão está ligada àquilo que podemos chamar de transferência da imagem: quanto mais a imagem tem o poder de tornar presente o ausente (de tornar mais presente o que está mais ausente), mais ela engendra a ilusão segundo a qual ela não tem poder e que é o próprio ausente que se apresenta na imagem. Olhamos a imagem, mas não vemos a imagem, já que ela é transparente. O maior poder da imagem é o de não aparecer: não vemos a imagem, só vemos a coisa representada por transparência; vemos um modelo e não a imagem e é ao modelo que atribuímos o poder da imagem.

É preciso compreender em que condições uma imagem pode não ser transparente; em que condições uma imagem pode se tornar opaca e deixar de criar a ilusão imaginária - na história antiga é medieval, a maioria das imagens sagradas eram ícones; elas eram transparentes porque eram potentes. Houve um dia em que as imagens sagradas começaram a ser visíveis: elas não deixaram de ser transparentes, continuaram a mostrar aquilo que representavam, mas começaram a ficar um pouco opacas. Isso foi em torno do século XIV e corresponde ao nascimento da arte. É um momento em que as imagens se tornam artísticas; o momento em que a arte se apoderou das imagens - as imagens deixaram de ser inteiramente transparentes e passaram a se mostrar.

Uma imagem é opaca ao mesmo tempo em que mostra alguma coisa se mostra a si mesma; uma imagem opaca não apenas representa alguma coisa, mas também representa a si mesma como imagem, como representante: enquanto ela mostra aquilo que representa, ela também mostra que ela representa.

Imagem arte se divorciaram: a arte deixou de querer representar e de querer produzir imagens e passou essa preocupação para diferentes técnicas, como as da fotografia. Depois que a arte abandonou o projeto representativo, as imagens foram abandonadas à pura reprodução mecanizada, à representação pela representação feita através da fotografia, do cinema, da televisão e das imagens digitais. Acabamos nos encontrando na mesma situação que a de antes da época da arte, quando as imagens eram feitas de maneira estereotipada com o único intuito de representar.

Existe uma nova ilusão porque as imagens estão abandonadas ao seu próprio poder de representar e criam a ilusão fundamental de não representar, de não serem imagens fabricadas, de serem um simples reflexo transparente daquilo que elas mostram - de ser um puro produto direto da realidade. O mais perigoso poder da imagem é fazer crer que ela não é uma imagem.  O trabalho de produção da imagem não é mais visto na imagem; a imagem não pode mais ser vista como imagem. Valoriza-se “mostrar a realidade tal qual ela é” e nunca mostrarmos como a imagem da realidade é fabricada. A câmera pretende mostrar o real, mas jamais vemos a realidade da câmera na imagem dela mesma. Isso é o que a imagem não pode mostrar: ela é impotente em se mostrar mostrando - não vemos mais as imagens como imagens.

Às vezes, só a presença de um artista atrás da imagem tem o poder de mostrar a imagem na imagem; de nos mostrar, ao mesmo tempo, a realidade representada e a realidade da representação. Esse é o destino que desejamos a todas as imagens; um estilo que as faça serem vistas como imagens. A questão não é termos menos imagens nem termos mais imagens, mas sim termos menos imagens transparentes (que pretendem mostrar o real enquanto se escondem) e mais imagens opacas (por meio das quais possamos conhecer uma realidade única).

WOLFF, Francis. Por trás do espetáculo o poder das imagens. In. Novaes Adauto (org.). Muito além do espetáculo. São Paulo: Senac, 2005.

 

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