Prática jornalística: o caso do manterrupting na CNN Brasil






Neste primeiro convite à reflexão, sugiro a leitura de dois textos e o acesso a dois vídeos postados no YouTube. Dos dois textos (e seria interessante que a leitura seja feita na ordem que se segue), o primeiro é um relatório sobre o jornalismo no século XXI, Jornalismo Pós-Industrial. Produzido pelos pesquisadores C. W. Anderson, Emily Bell e Clay Shirky, da Columbia University, o material foi publicado, em 2013, pela Revista de Jornalismo da ESPM. Nele, os autores afirmam que em vez de haver uma crise no jornalismo (provocada pela internet), há uma crise em relação ao principal produto do jornalismo: a notícia. Para eles, este produto, que até então tinha um processo de produção mais ou menos estável e era entregue “acabado” ao consumidor, passou a ser “hackeado” em suas diferentes etapas industriais. O resultado das transformações radicais na forma de produzir e fazer circular o noticiário levou, entre outras coisas, à redefinição do papel social dos jornalistas, do capital simbólico das instituições jornalísticas e das eticidades e esteticidades do novo ecossistema jornalístico.
O segundo texto é uma breve entrevista publicada pelo site Meio & Mensagem com o jornalista e sócio da Consultoria Mídia Mundo, Eduardo Tessler. Em janeiro do ano passado, ele passou a coordenar um novo projeto de consultoria da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), a SIP Responsive Consulting. A iniciativa buscava oferecer respostas para a transformação na indústria de notícias devido à digitalização dos conteúdos e aos hábitos das novas audiências. A entrevista publicada no M&M foi feita em março pela jornalista Victoria Navarro. Sob o título O coronavírus renovará a qualidade do jornalismo, o texto trata de como as incertezas econômicas atuais agirão sobre a produção jornalística. Para o consultor, um ponto crucial neste processo é o entendimento, por parte das grandes empresas jornalísticas, de que é preciso mudar o modelo de negócios pré-digital (dependente de grandes anunciantes) para o financiamento feito direto pelo cidadão.
Até aqui, ambos os textos não parecem trazer novidades – e é preciso frisar que a leitura de ambos é infinitamente mais rica que a síntese feita por mim. Mas eles reiteram a necessidade de refletirmos sobre um conceito que está na essência da atividade jornalística: o interesse público. Arrisco mesmo a afirmar que o interesse público é a razão de o jornalismo historicamente existir, insistir e resistir. De acordo com Salomão Ismail Filho, no aspecto jurídico “o termo interesse público é uma expressão bastante genérica e abstrata”. Para ele, um Estado Democrático de Direito cuida dos interesses públicos quando respeitas o que preveem a Constituição e as leis. “De interesse público”, ele diz, “serão todas as ações administrativas direcionadas a dar concretude aos direitos fundamentais; aos princípios consagrados na Constituição e às metas/tarefas primordiais do Estado, a partir do pressuposto inicial de respeito pela dignidade humana”.
No mesmo sentido de que o interesse público está na essência da atividade jornalística, é preciso também atentar para principal missão do jornalismo: zelar pelo direito inalienável (direito que não pode ser tirado) do homem à informação. Esta afirmação se ampara em três documentos importantes: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição Federal do Brasil e o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. No artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos está previsto que todo ser humano tem o direito de receber informações para que possa exercer sua liberdade de opinião e expressão; e no que se refere aos direitos do cidadão, a Constituição garante o direito de acesso a informações públicas de interesse particular, coletivo ou geral - garantia esta que originou a Lei nº 12.527 de 2011. Em consonância com esses dois documentos, o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros diz, em seu Art. 1º que “tem como base o direito fundamental do cidadão à informação, que abrange seu o direito de informar, de ser informado e de ter acesso à informação”.
Vamos fazer uma recapitulação do que foi abordado até aqui.
Primeiro: até a chegada da internet, o processo de produção da notícia era mais ou menos estável e ela era entregue de forma “acabada” ao consumidor; depois da internet, a notícia está (de sua produção à sua circulação) sempre “aberta”, e isso tem como consequências a redefinição do papel social dos jornalistas, do capital simbólico das instituições jornalísticas e das eticidades e esteticidades do novo ecossistema jornalístico.
Segundo: para alguns especialistas (como o coordenador de consultoria da Sociedade Interamericana de Imprensa), as incertezas econômicas provocadas pela pandemia do coronavírus atingirão a produção jornalística no sentido de mudar definitivamente  o modelo de negócios pré-digital para o financiamento feito direto pelo cidadão.
Terceiro: a razão de ser do jornalismo é garantir ao cidadão o acesso às informações de interesse público - aquelas referentes aos seus direitos fundamentais e que garantem o respeito à dignidade humana.
Agora, uma ressalva: “polêmicas” sobre a prática jornalística não podem ser tratadas como mero bate boca de esquina. Isso equivale a dizer que analisar a prática jornalística (ou o que alguns meios chamam de jornalismo mas não é) requer, antes de tudo, argumentos consistentes que partam de fontes confiáveis. E (com a desculpa do chavão) cada caso é um caso.
Vamos, então, refletir sobre o que aconteceu com a comentarista Gabriela Prioli, na CNN Brasil. 
Gabriela Prioli Della Vedova é uma advogada de 34 anos. Formada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (onde defendeu a dissertação A influência da repressão penal sobre o usuário de crack na busca por tratamento), foi sócia de um escritório de advocacia entre 2012 e 2017 e é professora convidada do curso de Pós-Graduação em Direito e Processo Penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Desde 2017, atua como comentarista em telejornais, principalmente em discussões que envolvem o problema do crack. Mês passado, em março, a advogada e professora estreou no quadro mediado pelo jornalista Reinaldo Gottino, O Grande Debate, do telejornal CNN Novo Dia da CNN Brasil. Ela comentava sobre política ao lado de Caio Coppolla e, em seguida, de Tomé Abduch.
Formado em Jornalismo pela Universidade São Judas Tadeu e pós graduado pela Cásper Libero, Reinaldo Gottino foi o repórter mais jovem a apresentar o programa Globo no Ar, na Rádio Globo SP. Trabalhou durante seis anos na rádio CBN e durante cinco anos na TV Gazeta. Em 2005, passou a fazer parte da equipe de jornalismo da TV Record, onde apresentou por três anos o SP Record. Em 2011 e em 2015, foi um dos narradores dos Jogos Panamericanos de Guadalajara e de Toronto. Durante 2013, apresentou também um quadro chamado "Povo Sofre", onde mostrava situações em que a população não conseguia resolver seus problemas e precisava da imprensa para conseguir, por exemplo, um atendimento médico. O quadro se tornou popular em São Paulo e, mais tarde, de 2014 a 2019, ele apresentou o programa Balanço Geral SP. Atualmente, aos 42 anos, é âncora de dois telejornais da CNN Brasil: CNN Novo Dia e CNN 360º. 
Sobre os companheiros de bancada de Gabiela, o primeiro foi Caio de Arruda Miranda. Formado em direito e especialista em marketing digital e mídias sociais, ele é um influenciador digital de direita que trabalhou como assistente parlamentar e participou do programa Morning Show, da Rádio Jovem Pan. Depois dele, Gabriela Prioli debateu (também sob a mediação do jornalista Reinaldo Gottino) com Tomé Abduch, empresário do ramo da construção. Ele fundou o movimento de direita Nas Ruas (conhecido por apoiar o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e por colocar bonecos infláveis de personalidades públicas nessas manifestações) junto com a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), de quem foi financiador da campanha eleitoral.
A comentarista ganhou popularidade por sua capacidade argumentativa e suas análises bem embasadas, o que explicitou o discurso inconsistente, a falta de conhecimento técnico e até mesmo posturas preconceituosas de Caio de Arruda Miranda e Tomé Abduch sobre os assuntos em debate. Depois de duas semanas dividindo a bancada com eles e com Reinaldo Gottino, Gabriela Prioli anunciou que sairia do programa e passaria a compartilhar suas análises nas redes sociais.  "Não consigo atingir o meu objetivo se for constrangida e não posso seguir participando do debate sem que a convicção sobre a gravidade do constrangimento não seja só minha, mas de todos os envolvidos, na frente e atrás das câmeras", ela publicou, se referindo às interrupções constantes que sofreu do apresentador Reinaldo Gottino e dos companheiros de bancada. No jargão feminista, este tipo de atitude se chama “manterrupting”. Com o significado literal de “homens que interrompem”, o termo é usado para denunciar a postura machista de interditar a expressividade ou mesmo o lugar de fala da mulher. Além de ter sido constrangida pelo manterrupting, Gabriela Prioli foi alvo da hostilidade de Caio Copolla e de Tomé Adduch que, em dois episódios, ironizaram sua capacidade analítica.
Por conta da decisão de Gabriela Prioli deixar O Grande Debate, a CNN Brasil emitiu uma nota na qual dizia que Gottino "excedeu a postura de mediador" e que realocaria a profissional em outro programa. A primeira edição do CNN Novo Dia sem Gabriela Prioli registrou queda no Ibope e o canal de notícias teve seu pior desempenho de audiência na média diária até então. Dois dias depois da edição em que Gabriela foi bruscamente interrompida e decidiu se afastar, Gottino publicou um pedido de desculpas em suas mídias sociais. Afirmando respeitar a pluralidade de opiniões e o respeito “ao lugar de voz das mulheres”, o mediador de O Grande Debate afirmou: “Errei, reconheço meu erro, peço perdão e lamento muito”.
É preciso apontar a importância do pedido público de desculpas veiculado pelo jornalista. Independentemente de ter sido sincero ou não (esta não é uma questão passível de ser analisada nesta nossa abordagem), o que importa é o fato de que uma postura preconceituosa e eticamente problemática foi assumida como errada e lamentada por quem errou. Neste caso, os erros do jornalista incorporam a postura preconceituosa do machismo que levou à interrupção brusca e a falta de percepção de que as análises de Gabriella Priolli eram muito mais relevantes para o interesse público que a retórica vazia do outro debatedor.
Colocada em circulação na rede através das mídias sociais, esta parte do noticiário da CNN Brasil foi ressignificada pelos telespectadores a ponto de comprometer a audiência do canal. Neste caso, o conteúdo (a análise de Gabriela Prioli) e a forma (o manterrupting) do processo de noticiamento foram pulverizados na rede. O resultado: questionamento sobre o papel do jornalista Reinaldo Gottino, do capital simbólico da CNN Brasil e do comportamento dos comentaristas no ethos jornalístico. Além disso, o ocorrido, em meio à pandemia do coronavírus, mostrou a força da credibilidade de Gabriela Prioli, que abriu mão da bancada do jornal em nome das redes sociais e abalou a audiência do canal de notícias.
Vimos que o manterrupting, por caracterizar machismo, compromete gravemente a credibilidade do jornalista. Assim, em vez de apenas aderir ao bate boca sobre a “lacração” ou não da comentarista, o objetivo deste texto é o de convidar a refletir sobre as questões que envolvem a nossa prática profissional. Espero que você, estudante de jornalismo ou leigo, aceite este convite. Porque tão importante quanto consumir as informações trabalhadas pelos jornalistas é entender a importância que o trabalho de informar tem para todos e cada um de nós. 

Fontes e referências

ANDERSON, C. W.; BELL, Emily; e SHIRKY, Clay. Jornalismo pós-industrial. adaptação aos novos tempos – Relatório para o Tow Center for Digital Journalism da Columbia Journalism School, Revista de Jornalismo – ESPM abril – maio – junho 2013 – tradução de Ada Felix.

ARAÚJO, Sammara Costa Pinheiro Guerra de. O direito à informação na legislação brasileira. Disponível em https://jus.com.br/artigos/36315/o-direito-a-informacao-na-legislacao-brasileira Acesso em 6 de abril de 2020.

CNN Brasil. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/ Acesso em 6 de abril de 2020.

FENAJ – Federação Nacional dos Jornalistas. Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Disponível em https://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2014/06/04-codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros.pdf Acesso em 6 de abril de 2020.

GOVERNO FEDERAL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponívelem http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm Acesso em 6 de abril de 2020.

ISMAIL FILHO, Salomão. Uma definição de interesse público e a priorização de direitos fundamentais. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-mar-28/mp-debate-interesse-publico-priorizacao-direitos-fundamentais Acesso em 6 de abril de 2020.

NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos do Homem. Disponível em https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf Acesso em 6 de abril de 2020.

NAVARRO, Victória. Tessler: “O coronavírus renovará a qualidade do jornalismo”. Disponível em https://www.meioemensagem.com.br/home/midia/2020/03/25/eduardo-tessler-o-coronavirus-renovara-a-qualidade-do-jornalismo.html Acesso em 6 de abril de 2020.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. LEI Nº 12.527, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011. Lei de Acesso à Informação. Casa Civil - Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm Acesso em 6 de abril de 2020.

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